Em fevereiro de 2014, tive o grato mérito de ser aceita como aluna regularmente matriculada de um curso de Especialização promovido pela UFSC, subvencionado pelo Ministério da Saúde, a saber: Atenção à Saúde da Pessoa Idosa. A disciplina Gerontologia I foi ministrada por Maria Cecília Antonia e Mônica Schiedler. Por meio de atividades da disciplina, pude refletir sobre as contribuições da sétima arte nos estudos sobre cultura e gerontologia, como ao tomar por caso o filme About Schmidt.
O contexto capitalista contemporâneo é o pano de
fundo desse filme. O modelo capitalista fez do trabalho “um dever moral e social”. O
desemprego ou a aposentadoria podem provocar sentimentos de culpa e vergonha, pois independentemente da idade, as pessoas são tidas como mão de obra ativa ou inativa.
Parte
integrante do cenário do filme é aquela relativa aos Direitos Humanos e aspectos
inerentes à reflexão na área da Antropologia, particularmente o “universalismo
e relativismo”. De universal: morte. De relativo: quando se dá o envelhecimento
e sob quais condições.
O filme About Schmidt: começa com a festa de
aposentadoria de Waren o protagonista. E termina com a compreensão que o
personagem consegue alcançar sobre a finitude da pessoa humana em grande parte
por efeito das cartas – em formato de diário – que ele escreve para Ndugu:
órfão de 6 anos de idade que vive numa instituição de caridade religiosa.
O enredo
do filme tem por fatos sequenciais a aposentadoria de Waren, seu cotidiano com a
esposa‘velha’ que morre antes do casamento da filha única do casal. Uma vez
viúvo, Waren deseja que a filha seja sua cuidadora no
período de luto, adiando ou desistindo do casamento. Ela não faz essa concessão
e o casamento se realiza, com a presença de Waren.
O filme
apresenta cenas recorrentes sobre o casamento americano, assim como cenas
caricaturais sobre as relações familiares e entre amigos. Outra caricatura
importante é o convívio de quem tem maior poder de compra com quem não tem, já
que os amigos e familiares do noivo pertencem a um meio sócio econômico
inferior aos da noiva. A justificativa dada para a escolha dela é
preconceituosa: a de que ao se casar tarde deve se conformar em casar ‘abaixo’.
Esteticamente
observando, as cenas recorrentes mencionadas só se sustentam por mérito da
exuberância expressiva do ator Jack Nicholson que interpreta o protagonista.
O culto
ao individualismo e à época da vida em que a composição familiar era a do tipo
“pai, mãe e filha pequena” são marcas fortes no retrato do protagonista. O
convívio social registrado é o de casais mais idosos que não moram com os
filhos e que cultivam amizades com outros casais de sua idade. Esse esquema de
agregar exclui o homem‘solitário’.
A trama
tem por pano de fundo a sociedade americana: talhada sob encomenda para o homem
adulto bem sucedido no exercício de sua profissão e de chefe de família –
cidadão que consegue amealhar o suficiente para viver com conforto e lazer os
anos após a aposentadoria. Essa mesma sociedade que exclui dentre outros: os
aposentados, os pobres e os inaptos.
Entre a
primeira cena (festa de aposentadoria de Waren) e a última (‘insight’ sobre a
finitude humana) vejamos o que o filme acrescenta à nossa compreensão sobre
aspectos psicológicos e comportamentais de um personagem masculino de 66 anos
(Waren).
Desde o
discurso do colega de Waren em sua homenagem, na festa de aposentadoria,
depreendemos que ela simboliza o término da utilidade profissional para o
protagonista. O colega menciona que o seguro social, os presentes recebidos ou
a própria festa não têm significado. Menciona que a maior riqueza é o
sentimento de que uma etapa foi cumprida. A esposa de Waren tenta quebrar a
rotina servindo o café da manhã no trailler
que compraram, sendo que ela escolhera o melhor veículo, contribuindo com seu
próprio dinheiro. No entanto, Waren ainda não consegue estabelecer uma rotina
prazerosa longe do trabalho.
O término
da utilidade profissional é confirmado pelo funcionário que assumiu o posto de
Waren, que o despede após breve conversa, olhando para o relógio. Waren pensa em
ter uma nova utilidade social: ajudar uma criança: Ndugu. As organizadoras da
instituição abrem a possibilidade do ‘padrinho’ poder trocar cartas com a
criança. Waren escreve longas cartas como se fosse para outro adulto. Na primeira
carta Waren, queixa-se do casamento desgastado e do envelhecimento da esposa.
O filme
aborda a questão de gênero e envelhecimento, mostrando casais nos quais os
homens aparentam ser mais ‘simpáticos’ e mais ‘jovens’ do que suas esposas. No
entanto, a mulher de Waren mantém suas funções de dona de casa até o final da
vida dela. A aposentadoria do marido só alteraria sua vida se ele, ao se
aposentar, fosse companhia para maiores oportunidades de lazer como a compra de
um ônibus do tipo ‘trailler’ poderia proporcionar.
Na
segunda carta para Ndugu, Waren narra a morte da esposa e o que isso significa
para sua expectativa de vida. Como antigo empresário do ramo de
comercialização de seguros de vida, explica que o cálculo engloba: idade, raça,
profissão, estado civil. Aposentado, com 66 anos, ao ficar viúvo apresenta 73%
de chance de morrer nos próximos 9 anos.
Após
tentar se livrar da memória da esposa burlando as regras que ela impunha
durante o relacionamento consegue expressar sua saudade autêntica pela esposa
falecida. Desta forma, na terceira carta para Ndugu, War escreve sobre outra
compreensão importante que alcança: “você tem de apreciar aquilo que tem”.
O filme About Schmidt poderia ter por título Cartas para Ndugu, um menino que ainda
não sabia ler, mas a quem explicaram que aqueles papéis escritos vinham com
notícias de alguém que o ajudava. Irmã Nadine responde a última carta, enviando
um desenho feito por Ndugu que retrata uma criança e um adulto. Eles estão
ligados por meio de um fio ou de seus próprios braços. Só então Waren percebe que
o menino reconhecia a existência de um vínculo entre ambos. O desenho feito por
Ndugu faz com que War consiga chorar, isto é, provoca a catarse e
consequentemente o ‘insight’ expresso na frase: “quando quem me conheceu também
tiver morrido, acabará Waren Schmidt”. A frase é poética e expressa a vitória
de um indivíduo que pôde escalar sozinho o sopé de uma montanha que se chama
finitude humana.
Portanto,
as cartas para Ndugu simbolizam a
oportunidade de praticarmos o exercício de introspecção pela expressão escrita
ou outro recurso adequado à busca de sentidos para nossas vidas. Esse exercício
é oportuno para todas as gerações e pode ser otimizado pelo diálogo
intergeracional.
O filme
About Schmidt poderia ter por título Aposentadoria
e Viuvez do Herói Americano. Os valores de Schmidt são postos em cheque de
forma aguda só após a morte da esposa que era o egoauxiliar de seu saber viver, reforçando uma postura
individualista que se enxerga e se valoriza pelo viés do pertencimento à classe
dos bem-sucedidos. Só então o protagonista percebe que há outros times em
campo, além do time vencedor. Percebe o outro lado das relações de forma a
poder conviver com realidades e opiniões opostas às suas.
Para quem
gosta de estatísticas e pensa que planejar o futuro é mais importante do que
ser feliz aqui e agora, as
descobertas existenciais de Schmidt lhe facultaram imaginar uma maior
expectativa de vida. Superar a viuvez significaria aumentar de 9 para 20 a
sobrevida, após a idade de 66 anos, numa região próspera dos Estados Unidos,
nas condições financeiras do protagonista.
Para quem
é mais realista ficará forte a imagem cênica da volta da viagem em que o
protagonista sozinho abre a porta de sua casa e encontra uma desorganização
total que deverá ser administrada exclusivamente por ele, sem contar com nenhum
auxílio externo... Seu próprio espaço existencial materializado, ou seja, o de
ser o único membro a ocupar o domicílio.
No
contexto cultural representado no filme, a família ampliada se reúne no Natal
ou férias de inverno e no dia de Ação de Graças. Já no Brasil o ‘caso’ do filme
encaixa-se para uma pequena, mas crescente parcela da população: a de pessoas
idosas que vivem sós.
PAULO, M. A.; WAJNMAN , S. ; OLIVEIRA, A. M. C. realizaram um estudo em Belo Horizonte – MG, Brasil: A
relação entre renda e composição domiciliar dos idosos no Brasil: um estudo
sobre o impacto do recebimento do Beneficio de Prestação Continuada (BPC).
As autoras partem dos pressupostos de outros
pesquisadores que citam em seu artigo:
"Entre os determinantes dos arranjos domiciliares
dos idosos, a renda tem papel de grande destaque
(CAMARGOS et al., 2007; SAAD, 2000; GHOSH, 2007; MARTELETO, 2007), sendo que
duas possibilidades são apontadas na literatura: o recebimento de uma renda
pode, por um lado, estimular os idosos a buscarem independência, optando por
morarem sozinhos. (COSTA, 1999; MCGARRY; SCHOENI, 1998; CARVALHO, 2000) e, por
outro, principalmente em situações de pobreza, atrair familiares interessados
em compartilhar desses benefícios,
aumentando a probabilidade da coabitação (EDMONDS et al., 2005; SAAD, 2000;
AMARANO, 2003; CIOFFI, 1998)."
Segundo o
contido no artigo, em 2005, o número de homens idosos que reside sozinho saltou
de 1,3 para 9,2 %. Obviamente, o impacto do benefício de Prestação Continuada
(B.P.C.) foi maior para a mulher que saltou de 1,1 % para 18%, confirmando o
que o filme mostra sobre as diferenças de gênero perante residir sozinho.
Ainda
segundo outro trecho do artigo já mencionado: "Engelhardt et al. (2005),
utilizando mudanças legislativas nos benefícios previdenciários de seguridade
social dos EUA, constataram que reduções no beneficio tiveram impacto
significativo, no sentindo de fazer migrar os idosos que viviam em arranjos
domiciliares independentes para arranjos com mais pessoas."
Tal citação corrobora o que é
registrado no filme em relação aos valores e modus vivendi do personagem Waren
(viúvo) versus os de Roberta (divorciada), que em linhas gerais foram
delineados a partir de suas diferenças de situação econômica.