sábado, 26 de abril de 2014

CARTAS PARA NDUGU, POR UM HOMEM IDOSO ESTADUNIDENSE.Edna Domenica Merola.

Em fevereiro de 2014, tive o grato mérito de ser aceita como aluna regularmente matriculada de um curso de Especialização promovido pela UFSC, subvencionado pelo Ministério da Saúde, a saber: Atenção à Saúde da Pessoa Idosa. A disciplina Gerontologia I foi ministrada por Maria Cecília Antonia e Mônica Schiedler. Por meio de atividades da disciplina, pude refletir sobre as contribuições da sétima arte nos estudos sobre cultura e gerontologia, como ao tomar por caso o filme About Schmidt.
O contexto capitalista contemporâneo é o pano de fundo desse  filme. O modelo capitalista fez do trabalho “um dever moral e social”. O desemprego ou a aposentadoria podem provocar sentimentos de culpa e vergonha, pois independentemente da idade, as pessoas são tidas como mão de obra ativa ou inativa.
Parte integrante do cenário do filme é aquela relativa aos Direitos Humanos e aspectos inerentes à reflexão na área da Antropologia, particularmente o “universalismo e relativismo”. De universal: morte. De relativo: quando se dá o envelhecimento e sob quais condições.
O filme About Schmidt: começa com a festa de aposentadoria de Waren o protagonista. E termina com a compreensão que o personagem consegue alcançar sobre a finitude da pessoa humana em grande parte por efeito das cartas – em formato de diário – que ele escreve para Ndugu: órfão de 6 anos de idade que vive numa instituição de caridade religiosa.
O enredo do filme tem por fatos sequenciais a aposentadoria de Waren, seu cotidiano com a esposa‘velha’ que morre antes do casamento da filha única do casal. Uma vez viúvo, Waren deseja que a filha seja sua cuidadora no período de luto, adiando ou desistindo do casamento. Ela não faz essa concessão e o casamento se realiza, com a presença de Waren.
O filme apresenta cenas recorrentes sobre o casamento americano, assim como cenas caricaturais sobre as relações familiares e entre amigos. Outra caricatura importante é o convívio de quem tem maior poder de compra com quem não tem, já que os amigos e familiares do noivo pertencem a um meio sócio econômico inferior aos da noiva. A justificativa dada para a escolha dela é preconceituosa: a de que ao se casar tarde deve se conformar em casar ‘abaixo’.
Esteticamente observando, as cenas recorrentes mencionadas só se sustentam por mérito da exuberância expressiva do ator Jack Nicholson que interpreta o protagonista.
O culto ao individualismo e à época da vida em que a composição familiar era a do tipo “pai, mãe e filha pequena” são marcas fortes no retrato do protagonista. O convívio social registrado é o de casais mais idosos que não moram com os filhos e que cultivam amizades com outros casais de sua idade. Esse esquema de agregar exclui o homem‘solitário’.
A trama tem por pano de fundo a sociedade americana: talhada sob encomenda para o homem adulto bem sucedido no exercício de sua profissão e de chefe de família – cidadão que consegue amealhar o suficiente para viver com conforto e lazer os anos após a aposentadoria. Essa mesma sociedade que exclui dentre outros: os aposentados, os pobres e os inaptos.
Entre a primeira cena (festa de aposentadoria de Waren) e a última (‘insight’ sobre a finitude humana) vejamos o que o filme acrescenta à nossa compreensão sobre aspectos psicológicos e comportamentais de um personagem masculino de 66 anos (Waren).
Desde o discurso do colega de Waren em sua homenagem, na festa de aposentadoria, depreendemos que ela simboliza o término da utilidade profissional para o protagonista. O colega menciona que o seguro social, os presentes recebidos ou a própria festa não têm significado. Menciona que a maior riqueza é o sentimento de que uma etapa foi cumprida. A esposa de Waren tenta quebrar a rotina servindo o café da manhã no trailler que compraram, sendo que ela escolhera o melhor veículo, contribuindo com seu próprio dinheiro. No entanto, Waren ainda não consegue estabelecer uma rotina prazerosa longe do trabalho.
O término da utilidade profissional é confirmado pelo funcionário que assumiu o posto de Waren, que o despede após breve conversa, olhando para o relógio. Waren pensa em ter uma nova utilidade social: ajudar uma criança: Ndugu. As organizadoras da instituição abrem a possibilidade do ‘padrinho’ poder trocar cartas com a criança. Waren escreve longas cartas como se fosse para outro adulto. Na primeira carta Waren, queixa-se do casamento desgastado e do envelhecimento da esposa.
O filme aborda a questão de gênero e envelhecimento, mostrando casais nos quais os homens aparentam ser mais ‘simpáticos’ e mais ‘jovens’ do que suas esposas. No entanto, a mulher de Waren mantém suas funções de dona de casa até o final da vida dela. A aposentadoria do marido só alteraria sua vida se ele, ao se aposentar, fosse companhia para maiores oportunidades de lazer como a compra de um ônibus do tipo ‘trailler’ poderia proporcionar.
Na segunda carta para Ndugu, Waren narra a morte da esposa e o que isso significa para sua expectativa de vida. Como antigo empresário do ramo de comercialização de seguros de vida, explica que o cálculo engloba: idade, raça, profissão, estado civil. Aposentado, com 66 anos, ao ficar viúvo apresenta 73% de chance de morrer nos próximos 9 anos.
Após tentar se livrar da memória da esposa burlando as regras que ela impunha durante o relacionamento consegue expressar sua saudade autêntica pela esposa falecida. Desta forma, na terceira carta para Ndugu, War escreve sobre outra compreensão importante que alcança: “você tem de apreciar aquilo que tem”.
O filme About Schmidt poderia ter por título Cartas para Ndugu, um menino que ainda não sabia ler, mas a quem explicaram que aqueles papéis escritos vinham com notícias de alguém que o ajudava. Irmã Nadine responde a última carta, enviando um desenho feito por Ndugu que retrata uma criança e um adulto. Eles estão ligados por meio de um fio ou de seus próprios braços. Só então Waren percebe que o menino reconhecia a existência de um vínculo entre ambos. O desenho feito por Ndugu faz com que War consiga chorar, isto é, provoca a catarse e consequentemente o ‘insight’ expresso na frase: “quando quem me conheceu também tiver morrido, acabará Waren Schmidt”. A frase é poética e expressa a vitória de um indivíduo que pôde escalar sozinho o sopé de uma montanha que se chama finitude humana.
Portanto, as cartas para Ndugu simbolizam a oportunidade de praticarmos o exercício de introspecção pela expressão escrita ou outro recurso adequado à busca de sentidos para nossas vidas. Esse exercício é oportuno para todas as gerações e pode ser otimizado pelo diálogo intergeracional.
O filme About Schmidt poderia ter por título Aposentadoria e Viuvez do Herói Americano. Os valores de Schmidt são postos em cheque de forma aguda só após a morte da esposa que era o egoauxiliar de seu saber viver, reforçando uma postura individualista que se enxerga e se valoriza pelo viés do pertencimento à classe dos bem-sucedidos. Só então o protagonista percebe que há outros times em campo, além do time vencedor. Percebe o outro lado das relações de forma a poder conviver com realidades e opiniões opostas às suas.
Para quem gosta de estatísticas e pensa que planejar o futuro é mais importante do que ser feliz aqui e agora, as descobertas existenciais de Schmidt lhe facultaram imaginar uma maior expectativa de vida. Superar a viuvez significaria aumentar de 9 para 20 a sobrevida, após a idade de 66 anos, numa região próspera dos Estados Unidos, nas condições financeiras do protagonista.
Para quem é mais realista ficará forte a imagem cênica da volta da viagem em que o protagonista sozinho abre a porta de sua casa e encontra uma desorganização total que deverá ser administrada exclusivamente por ele, sem contar com nenhum auxílio externo... Seu próprio espaço existencial materializado, ou seja, o de ser o único membro a ocupar o domicílio.
No contexto cultural representado no filme, a família ampliada se reúne no Natal ou férias de inverno e no dia de Ação de Graças. Já no Brasil o ‘caso’ do filme encaixa-se para uma pequena, mas crescente parcela da população: a de pessoas idosas que vivem sós.
PAULO, M. A.; WAJNMAN , S. ; OLIVEIRA, A. M. C. realizaram um estudo em Belo Horizonte – MG, Brasil: A relação entre renda e composição domiciliar dos idosos no Brasil: um estudo sobre o impacto do recebimento do Beneficio de Prestação Continuada (BPC).
As autoras partem dos pressupostos de outros pesquisadores que citam em seu artigo:
"Entre os determinantes dos arranjos domiciliares dos idosos, a renda tem papel de grande          destaque (CAMARGOS et al., 2007; SAAD, 2000; GHOSH, 2007; MARTELETO, 2007), sendo que duas possibilidades são apontadas na literatura: o recebimento de uma renda pode, por um lado, estimular os idosos a buscarem independência, optando por morarem sozinhos. (COSTA, 1999; MCGARRY; SCHOENI, 1998; CARVALHO, 2000) e, por outro, principalmente em situações de pobreza, atrair familiares interessados em compartilhar desses          benefícios, aumentando a probabilidade da coabitação (EDMONDS et al., 2005; SAAD, 2000; AMARANO, 2003; CIOFFI, 1998)."
Segundo o contido no artigo, em 2005, o número de homens idosos que reside sozinho saltou de 1,3 para 9,2 %. Obviamente, o impacto do benefício de Prestação Continuada (B.P.C.) foi maior para a mulher que saltou de 1,1 % para 18%, confirmando o que o filme mostra sobre as diferenças de gênero perante residir sozinho.
Ainda segundo outro trecho do artigo já mencionado: "Engelhardt et al. (2005), utilizando mudanças legislativas nos benefícios previdenciários de seguridade social dos EUA, constataram que reduções no beneficio tiveram impacto significativo, no sentindo de fazer migrar os idosos que viviam em arranjos domiciliares independentes para arranjos com mais pessoas." 
Tal citação corrobora o que é registrado no filme em relação aos valores e modus vivendi do personagem Waren (viúvo) versus os de Roberta (divorciada), que em linhas gerais foram delineados a partir de suas diferenças de situação econômica. 

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