Paulo Reglus Neves Freire nasceu em 19/09/1921, em Recife, Pernambuco. Faleceu em 02/05/1997, em Recife. É autor dos livros Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970; Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1971; Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976; Cartas à Guiné-Bissau. Registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; Educação e mudança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979; A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo, Cortez, 1982; A Educação na cidade. São Paulo, Cortez, 1991; Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992; Política e educação. São Paulo, Cortez, 1993; Professora sim, Tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo, Olho D'Água, 1993; Cartas a Cristina. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994; À sombra desta mangueira. São Paulo, Olho D'Água, 1995. Pedagogia de autonomia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996. Pedagogia da indignação. São Paulo, Editora da Unesp, 2000.
Carta de
Paulo Freire aos professores
Ensinar,
aprender: leitura do mundo, leitura da palavra
NENHUM
TEMA mais adequado para constituir-se em objeto desta primeira carta a quem
ousa ensinar do que a significação crítica desse ato, assim como a significação
igualmente crítica de aprender. É que não existe ensinar sem aprender e
com isto eu quero dizer mais do que diria se dissesse que o ato de ensinar
exige a existência de quem ensina e de quem aprende. Quero dizer que ensinar e
aprender se vão dando de tal maneira que quem ensina aprende, de um lado,
porque reconhece um conhecimento antes aprendido e, de outro, porque, observado
a maneira como a curiosidade do aluno aprendiz trabalha para apreender o
ensinando-se, sem o que não o aprende, o ensinante se ajuda a descobrir
incertezas, acertos, equívocos.
O
aprendizado do ensinante ao ensinar não se dá necessariamente através da
retificação que o aprendiz lhe faça de erros cometidos. O aprendizado do
ensinante ao ensinar se verifica à medida que o ensinante, humilde, aberto, se
ache permanentemente disponível a repensar o pensado, rever-se em suas posições;
em que procura envolver-se com a curiosidade dos alunos e dos diferentes
caminhos e veredas, que ela os faz percorrer. Alguns desses caminhos e algumas
dessas veredas, que a curiosidade às vezes quase virgem dos alunos percorre,
estão grávidas de sugestões, de perguntas que não foram percebidas antes pelo
ensinante. Mas agora, ao ensinar, não como um burocrata da mente, mas
reconstruindo os caminhos de sua curiosidade — razão por que seu corpo
consciente, sensível, emocionado, se abre às adivinhações dos alunos, à
sua ingenuidade e à sua criatividade — o ensinante que assim atua tem,
no seu ensinar, um momento rico de seu aprender. O ensinante aprende primeiro a
ensinar, mas aprende a ensinar ao ensinar algo que é reaprendido por estar
sendo ensinado.
O fato,
porém, de que ensinar ensina o ensinante a ensinar certo conteúdo não deve
significar, de modo algum, que o ensinante se aventure a ensinar sem
competência para fazê-lo. Não o autoriza a ensinar o que não sabe. A
responsabilidade ética, política e profissional do ensinante lhe coloca o dever
de se preparar, de se capacitar, de se formar antes mesmo de iniciar sua
atividade docente. Esta atividade exige que sua preparação, sua capacitação,
sua formação se tornem processos permanentes. Sua experiência docente, se bem
percebida e bem vivida, vai deixando claro que ela requer uma formação
permanente do ensinante. Formação que se funda na análise crítica de sua
prática.
Partamos
da experiência de aprender, de conhecer, por parte de quem se prepara para a tarefa
docente, que envolve necessariamente estudar. Obviamente, minha intenção
não é escrever prescrições que devam ser rigorosamente seguidas, o que
significaria uma chocante contradição com tudo o que falei até agora. Pelo
contrário, o que me interessa aqui, de acordo com o espírito mesmo deste livro,
é desafiar seus leitores e leitoras em torno de certos pontos ou aspectos,
insistindo em que há sempre algo diferente a fazer na nossa cotidianidade
educativa, quer dela participemos como aprendizes, e portanto ensinantes, ou
como ensinantes e, por isso, aprendizes também.
Não
gostaria, assim, sequer, de dar a impressão de estar deixando absolutamente
clara a questão do estudar, do ler, do observar, do reconhecer
as relações entre os objetos para conhecê-los. Estarei tentando clarear alguns
dos pontos que merecem nossa atenção na compreensão crítica desses processos.
Comecemos
por estudar, que envolvendo o ensinar do ensinante, envolve
também de um lado, a aprendizagem anterior e concomitante de quem ensina e a
aprendizagem do aprendiz que se prepara para ensinar amanhã ou refaz seu saber
para melhor ensinar hoje ou, de outro lado, aprendizagem de quem, criança
ainda, se acha nos começos de sua escolarização.
Enquanto
preparação do sujeito para aprender, estudar é, em primeiro lugar, um que-fazer
crítico, criador, recriador, não importa que eu nele me engaje através da
leitura de um texto que trata ou discute certo conteúdo que me foi proposto
pela escola ou se o realizo partindo de uma reflexão crítica sobre certo
acontecimento social ou natural e que, como necessidade da própria reflexão, me
conduz à leitura de textos que minha curiosidade e minha experiência
intelectual me sugerem ou que me são sugeridos por outros.
Assim, em
nível de uma posição crítica, a que não dicotomiza o saber do senso comum do
outro saber, mais sistemático, de maior exatidão, mas busca uma síntese dos
contrários, o ato de estudar implica sempre o de ler, mesmo que neste não se
esgote. De ler o mundo, de ler a palavra e assim ler a leitura do mundo
anteriormente feita. Mas ler não é puro entretenimento nem tampouco um
exercício de memorização mecânica de certos trechos do texto.
Se, na
verdade, estou estudando e estou lendo seriamente, não posso ultrapassar uma
página se não consegui com relativa clareza, ganhar sua significação. Minha
saída não está em memorizar porções de períodos lendo mecanicamente duas, três,
quatro vezes pedaços do texto fechando os olhos e tentando repeti-las como se
sua fixação puramente maquinal me desse o conhecimento de que preciso.
Ler é uma
operação inteligente, difícil, exigente, mas gratificante. Ninguém lê ou estuda
autenticamente se não assume, diante do texto ou do objeto da curiosidade a
forma crítica de ser ou de estar sendo sujeito da curiosidade, sujeito da
leitura, sujeito do processo de conhecer em que se acha. Ler é procurar buscar
criar a compreensão do lido; daí, entre outros pontos fundamentais, a
importância do ensino correto da leitura e da escrita. É que ensinar a ler é
engajar-se numa experiência criativa em torno da compreensão. Da
compreensão e da comunicação.
E a
experiência da compreensão será tão mais profunda quanto sejamos nela
capazes de associar, jamais dicotomizar, os conceitos emergentes da experiência
escolar aos que resultam do mundo da cotidianidade. Um exercício crítico
sempre exigido pela leitura e necessariamente pela escuta é o de como nos
darmos facilmente à passagem da experiência sensorial que caracteriza a
cotidianidade à generalização que se opera na linguagem escolar e desta
ao concreto tangível. Uma das formas de realizarmos este exercício consiste na
prática que me venho referindo como "leitura da leitura anterior do
mundo", entendendo-se aqui como "leitura do mundo" a
"leitura" que precede a leitura da palavra e que perseguindo
igualmente a compreensão do objeto se faz no domínio da cotidianidade. A
leitura da palavra, fazendo-se também em busca da compreensão do texto e,
portanto, dos objetos nele referidos, nos remete agora à leitura anterior do
mundo. O que me parece fundamental deixar claro é que a leitura do mundo que é
feita a partir da experiência sensorial não basta. Mas, por outro lado, não
pode ser desprezada como inferior pela leitura feita a partir do mundo
abstrato dos conceitos que vai da generalização ao tangível.
Certa
vez, uma alfabetizanda nordestina discutia, em seu círculo de cultura, uma
codificação (1) que representava um homem que,
trabalhando o barro, criava com as mãos, um jarro. Discutia-se, através da
"leitura" de uma série de codificações que, no fundo, são
representações da realidade concreta, o que é cultura. O conceito de cultura já
havia sido apreendido pelo grupo através do esforço da compreensão que
caracteriza a leitura do mundo e/ou da palavra. Na sua experiência
anterior, cuja memória ela guardava no seu corpo, sua compreensão do
processo em que o homem, trabalhando o barro, criava o jarro, compreensão
gestada sensorialmente, lhe dizia que fazer o jarro era uma forma de trabalho
com que, concretamente, se sustentava. Assim como o jarro era apenas o objeto,
produto do trabalho que, vendido, viabilizava sua vida e a de sua família.
Agora,
ultrapassando a experiência sensorial, indo mais além dela, dava um passo
fundamental: alcançava a capacidade de generalizar que caracteriza a
"experiência escolar". Criar o jarro como o trabalho transformador
sobre o barro não era apenas a forma de sobreviver, mas também de fazer cultura,
de fazer arte. Foi por isso que, relendo sua leitura anterior do mundo e
dos quefazeres no mundo, aquela alfabetizanda nordestina disse segura e
orgulhosa: "Faço cultura. Faço isto".
Noutra
ocasião presenciei experiência semelhante do ponto de vista da inteligência do
comportamento das pessoas. Já me referi a este fato em outro trabalho mas não
faz mal que o retome agora. Me achava na Ilha de São Tomé, na África
Ocidental, no Golfo da Guiné. Participava com educadores e
educadoras nacionais, do primeiro curso de formação para alfabetizadores.
Havia
sido escolhido pela equipe nacional um pequeno povoado, Porto Mont, região de
pesca, para ser o centro das atividades de formação. Havia sugerido aos
nacionais que a formação dos educadores e educadoras se fizesse não seguindo
certos métodos tradicionais que separam prática de teoria. Nem tampouco através
de nenhuma forma de trabalho essencialmente dicotomizante de teoria e prática e
que ou menospreza a teoria, negando-lhe qualquer importância,
enfatizando exclusivamente a prática, a única a valer, ou negando
a prática fixando-se só na teoria. Pelo contrário, minha intenção
era que, desde o começo do curso, vivêssemos a relação contraditória entre
prática e teoria, que será objeto de análise de uma de minhas cartas.
Recusava,
por isso mesmo, uma forma de trabalho em que fossem reservados os primeiros
momentos do curso para exposições ditas teóricas sobre matéria fundamental de
formação dos futuros educadores e educadoras. Momento para discursos de algumas
pessoas, as consideradas mais capazes para falar aos outros.
Minha
convicção era outra. Pensava numa forma de trabalho em que, numa única manhã,
se falasse de alguns conceitos-chave — codificação, decodificação, por
exemplo — como se estivéssemos num tempo de apresentações, sem,
contudo, nem de longe imaginar que as apresentações de certos conceitos
fossem já suficientes para o domínio da compreensão em torno deles. A discussão
crítica sobre a prática em que se engajariam é o que o faria.
Assim, a
ideia básica, aceita e posta em prática, é que os jovens que se preparariam
para a tarefa de educadoras e educadores populares deveriam coordenar a
discussão em torno de codificações num círculo de cultura com 25 participantes.
Os participantes do círculo de cultura estavam cientes de que se tratava de um
trabalho de afirmação de educadores. Discutiu-se com eles antes sua tarefa
política de nos ajudar no esforço de formação, sabendo que iam trabalhar com
jovens em pleno processo de sua formação. Sabiam que eles, assim como os jovens
a serem formados, jamais tinham feito o que iam fazer. A única diferença que os
marcava é que os participantes liam apenas o mundo enquanto os jovens a serem
formados para a tarefa de educadores liam já a palavra também. Jamais, contudo,
haviam discutido uma codificação assim como jamais haviam tido a mais mínima
experiência alfabetizando alguém.
Em cada
tarde do curso com duas horas de trabalho com os 25 participantes, quatro
candidatos assumiam a direção dos debates. Os responsáveis pelo curso assistiam
em silêncio, sem interferir, fazendo suas notas. No dia seguinte, no seminário
de avaliação de formação, de quatro horas, se discutiam os equívocos, os erros
e os acertos dos candidatos, na presença do grupo inteiro, desocultando-se com
eles a teoria que se achava na sua prática.
Dificilmente
se repetiam os erros e os equívocos que haviam sido cometidos e analisados. A
teoria emergia molhada da prática vivida.
Foi
exatamente numa das tardes de formação que, durante a discussão de uma
codificação que retratava Porto Mont, com suas casinhas alinhadas à margem da
praia, em frente ao mar, com um pescador que deixava seu barco com um peixe na
mão, que dois dos participantes, como se houvessem combinado, se levantaram,
andaram até a janela da escola em que estávamos e olhando Porto Mont lá longe,
disseram, de frente novamente para a codificação que representava o povoado:
"É. Porto Mont é assim e não sabíamos".
Até
então, sua "leitura" do lugarejo, de seu mundo particular, uma
"leitura" feita demasiadamente próxima do "texto", que era
o contexto do povoado, não lhes havia permitido ver Porto Mont como ele
era. Havia uma certa "opacidade" que cobria e encobria Porto Mont. A
experiência que estavam fazendo de "tomar distância" do objeto, no
caso, da codificação de Porto Mont, lhes possibilitava uma nova leitura
mais fiel ao "texto", quer dizer, ao contexto de Porto Mont. A
"tomada de distância" que a "leitura" da codificação lhes
possibilitou os aproximou mais de Porto Mont como "texto"
sendo lido. Esta nova leitura refez a leitura anterior, daí que hajam dito:
"É. Porto Mont é assim e não sabíamos". Imersos na realidade
de seu pequeno mundo, não eram capazes de vê-la. "Tomando distância"
dela, emergiram e, assim, a viram como até então jamais a tinham visto.
Estudar é
desocultar, é ganhar a compreensão mais exata do objeto, é perceber suas
relações com outros objetos. Implica que o estudioso, sujeito do estudo, se
arrisque, se aventure, sem o que não cria nem recria.
Por isso
também é que ensinar não pode ser um puro processo, como tanto tenho
dito, de transferência de conhecimento do ensinante ao aprendiz. Transferência
mecânica de que resulte a memorização maquinal que já critiquei. Ao estudo
crítico corresponde um ensino igualmente crítico que demanda necessariamente
uma forma crítica de compreender e de realizar a leitura da palavra e a leitura
do mundo, leitura do contexto.
A forma
crítica de compreender e de realizar a leitura da palavra e a leitura do mundo
está, de um lado, na não negação da linguagem simples, "desarmada",
ingênua, na sua não desvalorização por constituir-se de conceitos criados na
cotidianidade, no mundo da experiência sensorial; de outro, na recusa ao
que se chama de "linguagem difícil", impossível, porque
desenvolvendo-se em torno de conceitos abstratos. Pelo contrário, a forma
crítica de compreender e de realizar a leitura do texto e a do contexto não
exclui nenhuma da duas formas de linguagem ou de sintaxe. Reconhece, todavia,
que o escritor que usa a linguagem científica, acadêmica, ao dever procurar
tornar-se acessível, menos fechado, mais claro, menos difícil, mais simples,
não pode ser simplista.
Ninguém
que lê, que estuda, tem o direito de abandonar a leitura de um texto como
difícil porque não entendeu o que significa, por exemplo, a palavra epistemologia.
Assim
como um pedreiro não pode prescindir de um conjunto de instrumentos de
trabalho, sem os quais não levanta as paredes da casa que está sendo
construída, assim também o leitor estudioso precisa de instrumentos
fundamentais, sem os quais não pode ler ou escrever com eficácia. Dicionários (2), entre eles o etimológico, o de regimes
de verbos, o de regimes de substantivos e adjetivos, o filosófico, o de
sinônimos e de antônimos, enciclopédias. A leitura comparativa de texto, de
outro autor que trate o mesmo tema cuja linguagem seja menos complexa.
Usar
esses instrumentos de trabalho não é, como às vezes se pensa, uma perda de
tempo. O tempo que eu uso quando leio ou escrevo ou escrevo e leio, na consulta
de dicionários e enciclopédias, na leitura de capítulos, ou trechos de livros
que podem me ajudar na análise mais crítica de um tema — é tempo
fundamental de meu trabalho, de meu ofício gostoso de ler ou de escrever.
Enquanto
leitores, não temos o direito de esperar, muito menos de exigir, que os
escritores façam sua tarefa, a de escrever, e quase a nossa, a de compreender o
escrito, explicando a cada passo, no texto ou numa nota ao pé da página, o que
quiseram dizer com isto ou aquilo. Seu dever, como escritores, é escrever
simples, escrever leve, é facilitar e não dificultar a compreensão do
leitor, mas não dar a ele as coisas feitas e prontas.
A
compreensão do que se está lendo, estudando, não estala assim, de repente, como
se fosse um milagre. A compreensão é trabalhada, é forjada, por quem lê, por
quem estuda que, sendo sujeito dela, se deve instrumentar para melhor fazê-la.
Por isso mesmo, ler, estudar, é um trabalho paciente, desafiador,
persistente.
Não é
tarefa para gente demasiado apressada ou pouco humilde que, em lugar de assumir
suas deficiências, as transfere para o autor ou autora do livro, considerado
como impossível de ser estudado.
É preciso
deixar claro, também, que há uma relação necessária entre o nível do conteúdo
do livro e o nível da atual formação do leitor. Estes níveis envolvem a
experiência intelectual do autor e do leitor. A compreensão do que se lê tem
que ver com essa relação. Quando a distância entre aqueles níveis é demasiado
grande, quanto um não tem nada que ver com o outro, todo esforço em busca da compreensão
é inútil. Não está havendo, neste caso, uma consonância entre o indispensável
tratamento dos temas pelo autor do livro e a capacidade de apreensão por parte
do leitor da linguagem necessária àquele tratamento. Por isso mesmo é que
estudar é uma preparação para conhecer, é um exercício paciente e impaciente de
quem, não pretendendo tudo de uma vez, luta para fazer a vez de
conhecer.
A questão
do uso necessário de instrumentos indispensáveis à nossa leitura e ao nosso
trabalho de escrever levanta o problema do poder aquisitivo do estudante e das
professoras e professores em face dos custos elevados para obter dicionários
básicos da língua, dicionários filosóficos etc. Poder consultar todo esse
material é um direito que têm alunos e professores a que corresponde o dever
das escolas de fazer-lhes possível a consulta, equipando ou criando suas
bibliotecas, com horários realistas de estudo. Reivindicar esse material é um
direito e um dever de professores e estudantes.
Gostaria
de voltar a algo a que fiz referência anteriormente: a relação entre ler e
escrever, entendidos como processos que não se podem separar. Como processos
que se devem organizar de tal modo que ler e escrever sejam
percebidos como necessários para algo, como sendo alguma coisa de que a
criança, como salientou Vygotsky (3), necessita e nós também.
Em
primeiro lugar, a oralidade precede a grafia mas a traz em si desde o primeiro
momento em que os seres humanos se tornaram socialmente capazes de ir
exprimindo-se através de símbolos que diziam algo de seus sonhos, de seus
medos, de sua experiência social, de suas esperanças, de suas práticas.
Quando
aprendemos a ler, o fazemos sobre a escrita de alguém que antes aprendeu
a ler e a escrever. Ao aprender a ler, nos preparamos para imediatamente
escrever a fala que socialmente construímos.
Nas
culturas letradas, sem ler e sem escrever, não se pode estudar, buscar
conhecer, apreender a substantividade do objeto, reconhecer criticamente a
razão de ser do objeto.
Um dos
equívocos que cometemos está em dicotomizar ler de escrever,
desde o começo da experiência em que as crianças ensaiam seus primeiros passos
na prática da leitura e da escrita, tomando esses processos como algo desligado
do processo geral de conhecer. Essa dicotomia entre ler e escrever nos acompanha
sempre, como estudantes e professores. "Tenho uma dificuldade enorme de
fazer minha dissertação. Não sei escrever", é a afirmação comum que
se ouve nos cursos de pós-graduação de que tenho participado. No fundo, isso
lamentavelmente revela o quanto nos achamos longe de uma compreensão crítica do
que é estudar e do que é ensinar.
É preciso
que nosso corpo, que socialmente vai se tornando atuante, consciente, falante,
leitor e "escritor" se aproprie criticamente de sua forma de vir
sendo que faz parte de sua natureza, histórica e socialmente constituindo-se.
Quer dizer, é necessário que não apenas nos demos conta de como estamos sendo
mas nos assumamos plenamente com estes "seres programados, mas para
aprender", de que nos fala François Jacob (4). É necessário, então, que aprendamos a
aprender, vale dizer, que entre outras coisas, demos à linguagem oral e
escrita, a seu uso, a importância que lhe vem sendo cientificamente
reconhecida.
Aos que
estudamos, aos que ensinamos e, por isso, estudamos também, se nos impõe, ao
lado da necessária leitura de textos, a redação de notas, de fichas de leitura,
a redação de pequenos textos sobre as leituras que fazemos. A leitura de bons
escritores, de bons romancistas, de bons poetas, dos cientistas, dos filósofos
que não temem trabalhar sua linguagem a procura da boniteza, da simplicidade e
da clareza (5).
Se nossas
escolas, desde a mais tenra idade de seus alunos se entregassem ao trabalho de
estimular neles o gosto da leitura e o da escrita, gosto que continuasse a ser
estimulado durante todo o tempo de sua escolaridade, haveria possivelmente um
número bastante menor de pós-graduandos falando de sua insegurança ou de sua
incapacidade de escrever.
Se
estudar, para nós, não fosse quase sempre um fardo, se ler não fosse uma
obrigação amarga a cumprir, se, pelo contrário, estudar e ler fossem fontes de
alegria e de prazer, de que resulta também o indispensável conhecimento com que
nos movemos melhor no mundo, teríamos índices melhor reveladores da qualidade
de nossa educação.
Este é um
esforço que deve começar na pré-escola, intensificar-se no período da
alfabetização e continuar sem jamais parar.
A leitura
de Piaget, de Vygotsky, de Emilia Ferreiro, de Madalena F. Weffort, entre
outros, assim como a leitura de especialistas que tratam não propriamente da
alfabetização mas do processo de leitura como Marisa Lajolo e Ezequiel T. da
Silva é de indiscutível importância.
Pensando
na relação de intimidade entre pensar, ler e escrever e na necessidade que
temos de viver intensamente essa relação, sugeriria a quem pretenda rigorosamente
experimentá-la que, pelo menos, três vezes por semana, se entregasse à tarefa
de escrever algo. Uma nota sobre uma leitura, um comentário em torno de um
acontecimento de que tomou conhecimento pela imprensa, pela televisão, não
importa. Uma carta para destinatário inexistente. É interessante datar os
pequenos textos e guardá-los e dois ou três meses depois submetê-los a uma
avaliação crítica.
Ninguém
escreve se não escrever, assim como ninguém nada se não nadar.
Ao deixar
claro que o uso da linguagem escrita, portanto o da leitura, está em relação
com o desenvolvimento das condições materiais da sociedade, estou sublimando
que minha posição não é idealista.
Recusando
qualquer interpretação mecanicista da História, recuso igualmente a idealista.
A primeira reduz a consciência à pura cópia das estruturas materiais da
sociedade; a segunda submete tudo ao todo poderosismo da consciência. Minha
posição é outra. Entendo que estas relações entre consciência e mundo são
dialéticas (6).
O que não
é correto, porém, é esperar que as transformações materiais se processem para
que depois comecemos a encarar corretamente o problema da leitura e da escrita.
A leitura
crítica dos textos e do mundo tem que ver com a sua mudança em processo.
Notas
1 Sobre codificação, leitura do
mundo-leitura da palavra-senso comum-conhecimento exato, aprender, ensinar,
veja-se: Freire, Paulo: Educação como prática da liberdade — Educação e
mudança — Ação cultural para a liberdade — Pedagogia do oprimido — Pedagogia da
esperança, Paz e Terra; Freire & Sérgio Guimarães, Sobre educação,
Paz e Terra; Freire & Ira Schor, Medo e ousadia, o cotidiano do
educador, Paz e Terra; Freire & Donaldo Macedo, Alfabetização,
leitura do mundo e leitura da palavra, Paz e Terra; Freire, Paulo, A
importância do ato de ler, Cortez. Freire & Márcio Campos; Leitura
do mundo — Leitura da palavra, Courrier de L'Unesco, fev. 1991.
2 Ver Freire, Paulo. Pedagogia da
esperança — um reencontro com a Pedagogia do oprimido, Paz e Terra, 1992.
3 Vygotsky and education. Instructional implications
and applications of sociohistorical psychology.
Luis C. Moll (ed.), Cambridge University Press, First paper back edition, 1992.
4 François Jacob, Nous sommes programmés
mais pour aprendre. Le Courrier de L'Unesco, Paris, fev. 1991.
5 Ver Freire, Paulo, Pedagogia da
esperança, Paz e Terra, 1992.
6 Id., ibid.
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